Duas pernoites na casa Vila de Fátima, entre os dias 23 e 25, no alto de um morro entre o silêncio da lagoa do peri e o som das ondas da praia da armação. Totalizaram-se cerca de 9 horas intervaladas de meditação shikantaza (termo em japonês que significa “apenas sentar”), além de cerimônias e recitação de sutras. Estes primeiros dias são os piores, pois é como disciplinar o corpo e a mente para um novo comportamento e rotina, tão habituados ao comportamento automatizado do dia a dia. Um retiro budista da escola soto zen (ou sesshin) é algo único.
O único barulho que escutávamos, além dos miados, uivos, ronronados e latidos peristálticos característicos de cada um de nós (especialmente as 4 horas da manhã), era um tic de um relógio que marcava outro tempo estranho… seu ponteiro dos segundos se entregava à gravidade silenciosamente, e alertava apenas sua subida, para então cair de novo em silêncio. Comportava-se como o constante som das ondas do mar, marcado também pelo silêncio e pelo som. E passava a comportar-se como minha mente. Ou tudo isso de trás pra frente e vice-versa! O que quero dizer é que houve uma sintonia de silêncios e ruídos. E do lado, bem do lado mesmo, o absoluto zen da lagoa do peri. Como que um norte para a calma e a paz, o silêncio total existia ali por dentro e por fora.
Tudo no sesshin é feito em silêncio. Ocasionalmente, o voto de silêncio é rompido apenas por uns sorrisos ou palavras que escapam, meio que acompanhando a insistência da mente em querer se manifestar a todo custo.
Nesta casa de retiros, compartilhávamos nosso tempo, mas não nosso espaço, com um retiro de praticantes de yoga. Achei graça de uma refeição que fizemos no início. O refeitório dividido: de um lado o silêncio quase comparável a um velório (para um olhar desinformado), de outro, gargalhadas orgásticas. Introversão e extroversão lado a lado.
As refeições no zen são rituais, e nunca se come a comida quente como ela chega. E o tempo para se comer é outro… rápido, por incrível que pareça. No desjejum e almoço, as refeições são feitas em um oryoki (“apenas o suficiente”). Abrir e fechar um oryoki exige sincronicidade e atenção, e seguem um procedimento único. Comer, acordar, levantar, meditar… tudo é sincrônico. Como o monge Genshô lembrou, o grupo comporta-se como um cardume de peixes ou um bando de pássaros no ar: todos se movimentam juntos, como um organismo apenas. A atenção é total.
O sutras são escrituras sagradas recitadas em coro. Um em particular, o sutra do coração, contém a essência do pensamento budista. Particularmente acho gostoso cantá-lo em japonês, a partir do livro de sutras de onde acompanham-se as recitações. Tem um efeito especial. Mas em uma refeição acabamos por recitar sua tradução. Confesso que cantá-lo assim, traduzido, foi doloroso…. É como cantar “garota de ipanema” em japonês. Perde-se não apenas a musicalidade, mas talvez uma força histórica contida naquelas palavras centenárias contidas no sutra. Essa força eu sinto quando estou meditando, e digo para mim mesmo “zazen!” quando o macaco louco que todos temos em nossas cabeças insiste em agarrar-se nos galhos que vão passando. O macaco respeita essa palavra, e consegue parar por alguns segundos (ainda domestico esse animal!). E é muito diferente de quando digo “medite!”, ou então “silêncio!”… A palavra “Zazen” parece carregar força, intenção. Pode parecer meio místico, mas percebo que essa “força da palavra” existe em sua forma original, e não em sua tradução. No centro Zen Budista que pude participar na Nova Zelândia, os sutras eram recitados em inglês. A sensação foi a mesma. Penso que os sutras esterilizam-se quando são traduzidos…
Uma resposta adequada à pergunta “foi bom pra você?” ao final de um retiro sempre ficou como um mistério pra mim… O retiro em si não é algo prazeiroso. Aliás, está longe disso. Cheguei a conclusão de que um retiro é como fazer uma tatuagem: enquanto não acaba, dói. Mas não sofremos com isso. É pura dor física com hora pra acabar. Quando terminamos a tatuagem, fica aquela sensação de leveza, de alívio, de realização. O final de um retiro é parecido, mas a sensação perdura por dias. E se na tatuagem é a pele que fica marcada pra sempre, no retiro é algo aqui dentro de nós que guardamos pra sempre. E é uma tatuagem ao contrário: em vez de preencher, ela esvazia.
E outra: como numa tatuagem, quando terminamos um retiro, já estamos pensando no próximo!
Gashô!
segunda-feira, 26 de julho de 2010
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Carambola Thales! Fiquei sem fôlego com seu depoimento! /|\
ResponderExcluirObrigada por compartilhá-lo.
Gasshô
Bia Jikihô
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirDepoimento de quem experimentou a velha máxima do zen de "trazer finalmente a mente para casa".
ResponderExcluirValeu Thales, gasshô!
Michel Seikan.
Pelo jeito, assim como um bando de pássaros que seguem na mesma direção, seguimos nas mesmas sensações.
ResponderExcluirE já pensando no próximo sesshin, sem dúvida.
Muito bom ter te conhecido.
gassho
Nossa, fiquei tomada por teu texto. A experiência foi muito profunda, vê-se. Dá vontade de ir e fazer o mesmo.
ResponderExcluirGostei muito do teu blog. Desde já fico seguidora.
Abraço!
O espaço foi o mesmo, mas já percorridos 3 décadas que fiz ali um retiro espiritual da Igreja Católica. Guardadas as proporções, algumas vezes até paradoxais entre as 2 religiões, as sensações que me passaste foram muito parecidas.
ResponderExcluirAcho que isso acontece quando nos doamos e numa leveza deixamos o corpo e a mente na mesma sintonia e propósito!
Saravah meu caro amigo!
Muito bom ler seu depoimento...semana q vem vou fazer meu primeiro retiro de silêncio de 10 dias, e suas palavras me motivaram mais ainda. Linda a comparação com tatuagens, espero sentir o mesmo. Gratidão!
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