segunda-feira, 26 de julho de 2010

Sesshin de inverno, ou sobre como tatuamos por dentro...

Duas pernoites na casa Vila de Fátima, entre os dias 23 e 25, no alto de um morro entre o silêncio da lagoa do peri e o som das ondas da praia da armação. Totalizaram-se cerca de 9 horas intervaladas de meditação shikantaza (termo em japonês que significa “apenas sentar”), além de cerimônias e recitação de sutras. Estes primeiros dias são os piores, pois é como disciplinar o corpo e a mente para um novo comportamento e rotina, tão habituados ao comportamento automatizado do dia a dia. Um retiro budista da escola soto zen (ou sesshin) é algo único.

O único barulho que escutávamos, além dos miados, uivos, ronronados e latidos peristálticos característicos de cada um de nós (especialmente as 4 horas da manhã), era um tic de um relógio que marcava outro tempo estranho… seu ponteiro dos segundos se entregava à gravidade silenciosamente, e alertava apenas sua subida, para então cair de novo em silêncio. Comportava-se como o constante som das ondas do mar, marcado também pelo silêncio e pelo som. E passava a comportar-se como minha mente. Ou tudo isso de trás pra frente e vice-versa! O que quero dizer é que houve uma sintonia de silêncios e ruídos. E do lado, bem do lado mesmo, o absoluto zen da lagoa do peri. Como que um norte para a calma e a paz, o silêncio total existia ali por dentro e por fora.

Tudo no sesshin é feito em silêncio. Ocasionalmente, o voto de silêncio é rompido apenas por uns sorrisos ou palavras que escapam, meio que acompanhando a insistência da mente em querer se manifestar a todo custo.

Nesta casa de retiros, compartilhávamos nosso tempo, mas não nosso espaço, com um retiro de praticantes de yoga. Achei graça de uma refeição que fizemos no início. O refeitório dividido: de um lado o silêncio quase comparável a um velório (para um olhar desinformado), de outro, gargalhadas orgásticas. Introversão e extroversão lado a lado.

As refeições no zen são rituais, e nunca se come a comida quente como ela chega. E o tempo para se comer é outro… rápido, por incrível que pareça. No desjejum e almoço, as refeições são feitas em um oryoki (“apenas o suficiente”). Abrir e fechar um oryoki exige sincronicidade e atenção, e seguem um procedimento único. Comer, acordar, levantar, meditar… tudo é sincrônico. Como o monge Genshô lembrou, o grupo comporta-se como um cardume de peixes ou um bando de pássaros no ar: todos se movimentam juntos, como um organismo apenas. A atenção é total.

O sutras são escrituras sagradas recitadas em coro. Um em particular, o sutra do coração, contém a essência do pensamento budista. Particularmente acho gostoso cantá-lo em japonês, a partir do livro de sutras de onde acompanham-se as recitações. Tem um efeito especial. Mas em uma refeição acabamos por recitar sua tradução. Confesso que cantá-lo assim, traduzido, foi doloroso…. É como cantar “garota de ipanema” em japonês. Perde-se não apenas a musicalidade, mas talvez uma força histórica contida naquelas palavras centenárias contidas no sutra. Essa força eu sinto quando estou meditando, e digo para mim mesmo “zazen!” quando o macaco louco que todos temos em nossas cabeças insiste em agarrar-se nos galhos que vão passando. O macaco respeita essa palavra, e consegue parar por alguns segundos (ainda domestico esse animal!). E é muito diferente de quando digo “medite!”, ou então “silêncio!”… A palavra “Zazen” parece carregar força, intenção. Pode parecer meio místico, mas percebo que essa “força da palavra” existe em sua forma original, e não em sua tradução. No centro Zen Budista que pude participar na Nova Zelândia, os sutras eram recitados em inglês. A sensação foi a mesma. Penso que os sutras esterilizam-se quando são traduzidos…

Uma resposta adequada à pergunta “foi bom pra você?” ao final de um retiro sempre ficou como um mistério pra mim… O retiro em si não é algo prazeiroso. Aliás, está longe disso. Cheguei a conclusão de que um retiro é como fazer uma tatuagem: enquanto não acaba, dói. Mas não sofremos com isso. É pura dor física com hora pra acabar. Quando terminamos a tatuagem, fica aquela sensação de leveza, de alívio, de realização. O final de um retiro é parecido, mas a sensação perdura por dias. E se na tatuagem é a pele que fica marcada pra sempre, no retiro é algo aqui dentro de nós que guardamos pra sempre. E é uma tatuagem ao contrário: em vez de preencher, ela esvazia.

E outra: como numa tatuagem, quando terminamos um retiro, já estamos pensando no próximo!

Gashô!

7 comentários:

  1. Carambola Thales! Fiquei sem fôlego com seu depoimento! /|\
    Obrigada por compartilhá-lo.

    Gasshô

    Bia Jikihô

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. Depoimento de quem experimentou a velha máxima do zen de "trazer finalmente a mente para casa".

    Valeu Thales, gasshô!

    Michel Seikan.

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  4. Pelo jeito, assim como um bando de pássaros que seguem na mesma direção, seguimos nas mesmas sensações.

    E já pensando no próximo sesshin, sem dúvida.

    Muito bom ter te conhecido.

    gassho

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  5. Nossa, fiquei tomada por teu texto. A experiência foi muito profunda, vê-se. Dá vontade de ir e fazer o mesmo.

    Gostei muito do teu blog. Desde já fico seguidora.

    Abraço!

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  6. O espaço foi o mesmo, mas já percorridos 3 décadas que fiz ali um retiro espiritual da Igreja Católica. Guardadas as proporções, algumas vezes até paradoxais entre as 2 religiões, as sensações que me passaste foram muito parecidas.
    Acho que isso acontece quando nos doamos e numa leveza deixamos o corpo e a mente na mesma sintonia e propósito!
    Saravah meu caro amigo!

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  7. Muito bom ler seu depoimento...semana q vem vou fazer meu primeiro retiro de silêncio de 10 dias, e suas palavras me motivaram mais ainda. Linda a comparação com tatuagens, espero sentir o mesmo. Gratidão!

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